sábado, 22 de fevereiro de 2014

A serpente e o pensar





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O título de nossa postagem desta semana refere-se ao  livro do Augusto de Campos em torno da obra de um grande poeta e filósofo do fin du siècle, Paul Valéry, no qual ele nos traz, com a força da linguagem poética, o símbolo da serpente como representação do pensar (Augusto de Campos. Paul Valéry: A serpente e o pensar, 2a. ed. São Paulo: Ficções, 2011).

Segundo Jung: Talvez o símbolo onírico mais comum de transcendência seja a serpente, representada como símbolo terapêutico de Esculápio, deus romano da medicina, e que até hoje subsiste como símbolo da profissão médica. Trata-se originariamente de uma serpente não venenosa que vivia em árvores. Como a vemos hoje, enrolada no bastão do deus da medicina, parece representar uma espécie de mediação entre a terra e o céu (Carl Jung (Org.). O homem e seus símbolos, trad. Maria Lúcia Pinho, 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008).

Curioso observar que no Gênesis a serpente parece obedecer a um comando do próprio Criador. Afinal não foi a toa que o Senhor fez da serpente a mais astuta das alimárias (Gênesis, 2, 1). Em Gênesis 1, Deus havia determinado: Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança.

A serpente confessa pela pena do poeta:

[...]
Eu sou no fundo a seu favor
Esse inimitável sabor
Que em ti mesmo tem sua chama!

 Valery brinca com a similitude das palavras francesas: ser-pent = pen-ser. A serpente em nossa tradição judaico-cristã se constitui num verdadeiro arquétipo do maligno. No jardin do Eden, ela causa a desgraça da humanidade quando engana Eva e retira-lhe a inocência dando-lhe a faculdade do pensamento. De forma magistral o poema de Valéry reconstitui a cena do paraíso, quando Eva encontra a criatura, que lhe sibila insinuando a arvore do conhecimento:

Ela já bebe a minha fala
Que erigiu uma estranha obra;
Seu olho as vezes perde a ala
De um anjo e volve à minha dobra.
Este mau animal que cobra
A dureza que te sustenta,
Ah, o pérfido que se tenta
É só uma voz por entre o verde!
- Mas Eva a ouve toda atenta
E nenhuma palavra perde!

A associação entre o pensar, faculdade de quem comeu do fruto da árvore do conhecimento e a perda da inocência como uma cruz que o ser humano carrega, é capturado por Fernando Pessoa em seus poemas dramáticos (Fernando Pessoa. Poemas dramáticos; poemas ingleses; poemas franceses; poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983):

Não é o vício
Nem a experiência que desflora a alma: 
É só o pensamento. Há inocência
Em Nero mesmo e em Tibério louco
Porque há inconsciência. Só pensar
Desflora até ao íntimo do ser.
Este perpétuo analisar de tudo,
Este buscar duma nudez suprema
Raciocinada coerentemente,
É que tira a inocência verdadeira
Pela suprema consciência funda
De si, do mundo, de todos. Guarde, guarde
Fora do vício e do vil mundo além
Em gruta ou solidão o eremita;
Se o pensamento vir tudo
(...)
Pensar, pensar e não poder viver!
Pensar, sempre pensar, perenemente,
Sem poder ter mão nele! Ah eu sorrio
Quando às vezes eu noto o inconsciente
Riso vazio do bandido,
Rindo-se da inocência! Se ele soubesse
O que é perder a inocência toda...
Não a inocência vã do corpo ao olhar,
Ou vulgar e banal conhecimento,
Mas a inocência bela do viver;
De sentir — seja mesmo como ele
Esse (...) escravo do deboche-seja!
Sentir um sentir que abertamente
Se não ache vazio.


O homem perde a inocência, como diz Pessoa, mas ganha a liberdade, torna-se um sujeito moral como afirma Kant, capaz de construir seu próprio destino, escapando do determinismo do real pela janela do pensamento. Nesse sentido Hannah Arendt cita a frase de Valéry: Às vezes penso, às vezes sou (Hannah Arendt. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008).

O imaginar, o querer, o sentir, segundo Descartes constituem a atividade de pensar. Assim podemos pensar um mundo novo e como demiurgos, graças ao som da flauta da mãe serpente (Raul Seixas), continuarmos a criação com esperança. Leiam o livro do Augusto de Campos. Depois, Ne s'arrête pas jamais! façamos!

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Cantinhos para se apaixonar por Paris! (ou meus centros de gravidade!)



Meus amigos viajantes e os amigos dos meus amigos sempre me pedem sugestões de "cantinhos" parisienses. Daqueles lugares que reflitam a alma de Paris - as cidades possuem também uma alma - pela qual, como eu, venham se apaixonar, e que lhes permita um novo centro de gravidade: "Um lugar do qual se vai para sempre voltar", como falávamos eu e o poeta Antônio Siqueira num verso de nossa mais antiga parceria poética.

Foto do perfil de La Fée Verte Começo com um aperitivo! Voilá! Após minhas habitués incursões à Rue Soufflot, pelo menos uma vez por semana vou ao La Fée Vert me deliciar com as aparentes infinitas variedades de absinto. Cada ida procuro fazer uma viagem diferente, escolhendo uma nouvelle espèce  da bebida que encantou a geração dos "benditos". Depois de alguma dificuldade para acomodar-me com minhas sacolas de livros nos corredores estreitos de mesas pequeninas que ficam no fundo do bar, meu lugar preferido, relaxo, peço uma boa porção de jambon e espero, pacientemente, como cabe a um iniciado, o gotejar  lento da água gelada sobre o torrão de açucar até o seu desfazimento completo. Prudentemente, abro a torneira do inesgotável reservatório, que dá charme especial ao lugar, e adiciono mais dois dedos de água geladíssima.

O lugar é frequentado por amantes da cidade e quase sempre entabulo uma animada conversa com meus vizinhos, compartilhando impressões da viagem ou sobre a poesia dos mais ilustres amantes da " fada verde", como foi batizada a bebida no fin du siècle.

Após três ou quatro doses estou pronto para o jantar, que previamente reservo no La Coupole. Lugar amplo em estilo art deco, que após inaugurado no natal de 1927, como lembra o Sérgio Augusto ( E foram todos para Paris. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011), logo virou um lugar de literatos, jornalistas, artistas plásticos, cineastas e toda sorte de tipos inteligentes nos anos que se seguiram. Vou primeiro ao bar, com muita imaginação, peço um dry martini à moda do James Bond. Sou logo reconhecido!!



Convidado com todas as cerimônias a acomodar-me no imenso salão, peço, invariavelmente, meu curry d'agneau fermier, servido por dois indianos. O acompanhamento é sempre um Saint-Émillion grand cru conforme a disponibilidade da carta.

La Coupole Curry man

Após fazer da garrafa um cadáver, como diz o mestre Eros Grau (Paris: Quartier Saint-Germain-Des-Prés. São Paulo: Globo, 2011), o tempo fica doido (não eu!). Olho do lado,  - é a Kiki sem metafísica! - sopra-me um cara que de repente aparece sentado ao meu lado com um forte sotaque lusitano e hálito de bagaceira. Estou delirando? A moça abre abre um largo sorriso e depois se insinua deixando piscar os olhos num esquecido código do desejo. É a Kiki, aqueles lábios carnudos, fogueira devoradora de almas! demônio de Montparnase! Ela está acompanhada. É o Hemingway! hoje não vai dar pra encarar o papá e não parece uma boa ideia comprar uma briga com a geração perdida!

Fecho os olhos num ritual de invocação da realidade, torno a abrir e num lampejo de razão peço a conta, que pago sôfrego, levantando-me, saio polidamente despedindo-me com um aceno da Gertrude Stein, que estava sentada do outro lado para flertar a Kiki.

Amanhã vou ao triângulo das bermudas, nome que dei a esquina do Boulevard Saint-Germain com St Benoît, onde ficam a Brasserie Lipp e os Cafés Flore e Les Deux Magots, flanando por lá, quem sabe, encontro  Kiki sozinha... Quem sabe, noutra loucura do tempo possamos ler juntos um poema do Éluard...

Image

Leria para aquela dama, claro que acompanhado d'un verre de chablis, alguns versos de um poema apaixonante do Paul:

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito

Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco. 


Paul Éluard

 Tem um final, minha história, mas é meio impróprio e eu não digo... Fiquem com os endereços e aproveitem a belle ville!!

Endereços:  

La Fée Vert: 108 Rue de la Roquette, 75011 Paris, França
+33 1 43 72 31 24 - Metro Voltaire (quem quiser saber + sobre o absinto vale consultar:
www.feeverte.net/faq.html

La Coupole: 102 Bd du Montparnasse 75014 Paris

Tél : +33 (0)1 43 20 14 20 - Metro Vavin
Ouvert 7J/7 de 8h30 à minuit (23h00 dimanche et lundi

Brasserie Lipp: 51 Boulevard Saint-Germain, 75006 Paris, França
+33 1 45 48 53 91 - Metro St. Germain.


Café Flore: 72 Boulevard Saint-Germain, 75006 Paris, França
+33 1 45 48 55 26 - Metro St. Germain.

Les Deux Margots: 6 Place Saint-Germain des Prés, 75006 Paris, França
+33 1 45 48 55 25 - Metro St. Germain.