.

O título de nossa postagem desta semana refere-se ao livro do Augusto de Campos em torno da obra de um grande poeta e filósofo do fin du siècle, Paul Valéry, no qual ele nos traz, com a força da linguagem poética, o símbolo da serpente como representação do pensar (Augusto de Campos. Paul Valéry: A serpente e o pensar, 2a. ed. São Paulo: Ficções, 2011).
Segundo Jung: Talvez o símbolo onírico mais comum de transcendência seja a serpente, representada como símbolo terapêutico de Esculápio, deus romano da medicina, e que até hoje subsiste como símbolo da profissão médica. Trata-se originariamente de uma serpente não venenosa que vivia em árvores. Como a vemos hoje, enrolada no bastão do deus da medicina, parece representar uma espécie de mediação entre a terra e o céu (Carl Jung (Org.). O homem e seus símbolos, trad. Maria Lúcia Pinho, 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008).
Curioso observar que no Gênesis a serpente parece obedecer a um comando do próprio Criador. Afinal não foi a toa que o Senhor fez da serpente a mais astuta das alimárias (Gênesis, 2, 1). Em Gênesis 1, Deus havia determinado: Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança.
A serpente confessa pela pena do poeta:
[...]
Eu sou no fundo a seu favor
Esse inimitável sabor
Que em ti mesmo tem sua chama!
Ela já bebe a minha fala
Que erigiu uma estranha obra;
Seu olho as vezes perde a ala
De um anjo e volve à minha dobra.
Este mau animal que cobra
A dureza que te sustenta,
Ah, o pérfido que se tenta
É só uma voz por entre o verde!
- Mas Eva a ouve toda atenta
E nenhuma palavra perde!
Não é o vício
Nem a experiência que desflora a alma:

É só o pensamento. Há inocência
Em Nero mesmo e em Tibério louco
Porque há inconsciência. Só pensar
Desflora até ao íntimo do ser.
Este perpétuo analisar de tudo,
Este buscar duma nudez suprema
Raciocinada coerentemente,
É que tira a inocência verdadeira
Pela suprema consciência funda
De si, do mundo, de todos. Guarde, guarde
Fora do vício e do vil mundo além
Em gruta ou solidão o eremita;
Se o pensamento vir tudo
(...)
Pensar, pensar e não poder viver!
Pensar, sempre pensar, perenemente,
Sem poder ter mão nele! Ah eu sorrio
Quando às vezes eu noto o inconsciente
Riso vazio do bandido,
Rindo-se da inocência! Se ele soubesse
O que é perder a inocência toda...
Não a inocência vã do corpo ao olhar,
Ou vulgar e banal conhecimento,
Mas a inocência bela do viver;
De sentir — seja mesmo como ele
Esse (...) escravo do deboche-seja!
Sentir um sentir que abertamente
Se não ache vazio.
O homem perde a inocência, como diz Pessoa, mas ganha a liberdade, torna-se um sujeito moral como afirma Kant, capaz de construir seu próprio destino, escapando do determinismo do real pela janela do pensamento. Nesse sentido Hannah Arendt cita a frase de Valéry: Às vezes penso, às vezes sou (Hannah Arendt. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008).
O imaginar, o querer, o sentir, segundo Descartes constituem a atividade de pensar. Assim podemos pensar um mundo novo e como demiurgos, graças ao som da flauta da mãe serpente (Raul Seixas), continuarmos a criação com esperança. Leiam o livro do Augusto de Campos. Depois, Ne s'arrête pas jamais! façamos!